terça-feira, 31 de maio de 2011

Retrato em sépia de realizações não acontecidas

"Numa manhã sem grandes acontecimentos meu avô despediu-se de minha avó e faleceu pouco antes da hora do almoço. Não chegou a completar um século de existência, como todos esperávamos, mas chegou bem perto. Entre os seus pertences havia duas garrafas de vinho. Guardadas no fundo de um armário há pelo menos trinta anos, ambas foram a mim confiadas por minha avó. (...) Abri a garrafa, evidentemente. A cor variava entre o alaranjado de um chá inglês passado do ponto e o ocre ferruginoso das terras de Siena. O aroma, alguma coisa indefinida e ligeiramente ácida sem no entanto aparentar vinagre. Provei. Naturalmente, não havia mais vinho naquela garrafa, tampouco sua sombra ou degeneração. Repousava ali um retrato em sépia de grandes realizações não acontecidas. Na boca, percebia-se facilmente o gosto meio doce meio amargo de tudo aquilo que poderia ter vindo à tona de maneira esplendorosa e, no entanto, não passou da condição de potência. Vinhos que morrem na garrafa são como paixões que não se concretizam porque uma das duas partes chegou atrasada ao que teria sido o encontro de suas vidas. Vinhos devem ser devidamente degustados no ponto ideal de sua curva, no estado de maturidade, depois da juventude e antes da decrepitude, diriam aqueles outros, os pragmáticos. Digam o que disserem. Em um único gole daquele que um dia foi um Concha y Toro, podia se experimentar, ainda que por breve instante, o vislumbre do quão espetacular teria sido beber daquele chilean riesling cosecha 1974. Não importa se na juventude, maturidade ou em que ponto de sua curva. Mas sim, numa daquelas manhãs sem grandes acontecimentos, ali por volta do meio-dia, na companhia do velho."

Eduardo Lima, nesse blog

Quantas vezes não passamos por situações como essa? Algo que nunca foi, que poderia ter sido, mas que não veio a ser. Ou que se vai prematuramente, deixando em aberto inúmeras possibilidades, feitos, objetivos e planos não concluídos ou não realizados. O que não foi concretizado, e que ficou apenas no campo das ideias. O combinado que acabou não acontecendo, por qualquer motivo. Muita coisa a ser dita, vivida, o prometido e cogitado que não se concretizou. O texto me lembrou o dia em que meu velho partiu. Também não completou um século, mas chegou perto. Era um bravo e lutou até quando deu. Não me deixou nenhum chilean riesling de 30 anos,  mas herdei um italiano de 1995. Está lá, repousando. Nunca tive coragem de abrir. Está lá...

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