quinta-feira, 30 de outubro de 2008

Da favela à drogaria

A discussão tabu sobre a legalização das drogas como forma de destruir economicamente o tráfico e reduzir o morticínio a um problema de saúde pública emergirá mais cedo ou mais tarde.

Alfredo Sirkis


A capacidade de reposição e reprodução do tráfico lembra um monstro da mitologia grega: a Hidra de Lerna. Tinha muitas cabeças e cada vez que uma era cortada, nasciam várias outras. As drogas, para além dos eventuais efeitos negativos sobre a saúde pública, constituem a base de uma gigantesca atividade econômica, cujo impacto é infinitamente mais grave e destruidor do que os efeitos negativos do seu uso ou abuso. Os bandidos armados de AR-15, ocupando territorialmente a favela, são apenas a ponta visível do iceberg do tráfico na própria comunidade. São a falange militar de um sistema de distribuição comercial que emprega mães de família e até idosos, que embalam, crianças que funcionam de mensageiros e fogueteiros e mais uma série de atividades consorciadas, algumas de entretenimento, festivas e musicais. Toda uma cultura fascistóide se forma ao redor dessa atividade econômica, realçando valores machistas, bairristas e sádicos.

O tráfico é uma poderosa fonte de riqueza no meio da pobreza e ceva as “bandas podres” das polícias, da justiça e do sistema penitenciário. Um jovem em busca de trabalho ganhará muito mais como “avião” do que como pedreiro, balconista ou eletricista. O status de traficante lhe granjeará “respeito”, objetos de consumo cobiçados, atenção feminina. Valores éticos e religiosos e o medo da morte nunca impediram a reposição daqueles freqüentemente eliminados. Gerações sucessivas vão surgindo, com uma tendência à produção de bandidos cada vez mais jovens, “bolados” e cruéis. Sua movimentação agora é um ataque frontal à sociedade e ao Estado, numa fase inicial, tosca, que poderá ainda piorar muito.

O tráfico existe em função do mercado composto de viciados e usuários menos ou mais eventuais. A repressão nesta ponta, que atualmente volta a ser objeto de propostas e campanhas de mídia, é ineficaz. Seria realista prender usuários quando não há lugar suficiente nas prisões sequer para os bandidos violentos? A idéia da descriminalização do usuário vem avançando lentamente, de forma oblíqua. Ela pode eventualmente coibir uma maior interferência policial na privacidade dos mesmos e limitar a extorsão a ela vinculada, mas não altera o “x” do problema e traz consigo a incoerência da procura ser tolerada mas a oferta ilegal.

Para reduzir o uso e abuso de drogas ilícitas existe um único caminho viável que o mesmo que se aplica, com sucesso, às drogas legais: a educação e a prevenção. Qualquer ex-tabagista sabe como é duro deixar o cigarro, no entanto, cada vez menos gente fuma. Todas drogas, tanto lícitas como ilícitas, acarretam potencialmente algum dano, maior ou menor, mas seus efeitos e eventual dependência são socialmente secundários e muito menos graves que as conseqüências devastadoras da ilegalidade da drogas como motor de uma economia subterrânea e pivô das disputas pelos seus mercados. No Rio de Janeiro morrem por ano menos de cem pessoas por overdose de cocaína. Essas mortes poderiam ser reduzidas se houvesse um maior controle medico sobre dependentes e substâncias. Não há comparação de escala entre a mortandade por intoxicação química e o morticínio de milhares de pessoas mortas nas guerras pelos mercados de drogas. Além desse massacre a sociedade sofre com o imenso poder corruptor e intimidador dessa atividade cujas metástases se espalham pelas comunidades, pelas polícias, por outras instituições. O tráfico praticamente destruiu o movimento associativo nas favelas, por exemplo.

Os defensores da descriminalização do usuário, em geral, se originam na esquerda e abordam a questão sob o ângulo dos direitos civis, da não ingerência do estado na privacidade das pessoas. Já a defesa da legalização, aparentemente mais extremada, têm curiosamente seus principais defensores, num campo mais conservador. A revista inglesa The Economist, o premio Nobel de Economia Milton Friedman, o promotor Vicent Bugliosi, o jornalista William Buckley Jr são alguns desses pensadores que partem de um amargo realismo. Seu argumento é de uma radical simplicidade: queremos destruir o tráfico? Então vamos acabar com sua base econômica permitindo a compra legal e controlada das drogas ilícitas... na drogaria. Regulá-las, cobrar impostos sobre elas e dar-lhes o mesmo tratamento das drogas hoje lícitas, mas, nem por isso, menos nocivas à saúde.

No início, raciocinam eles, o consumo poderia até aumentar, pela novidade, mas a médio prazo, provavelmente, cairia, como o do cigarro, mercê de campanhas educativas e prevenção. O problema das drogas sairia assim do âmbito do morticínio, da guerra pelos mercados, dos desafios armados ao estado e à sociedade e se concentraria no campo da saúde pública. A droga deixaria de matar a bala milhares de pessoas e construir impérios. Continuaria a matar, de overdose, algumas dezenas de drogados crônicos ou temerários. Cessaria a relação perversa entre o viciado e o traficante. Um mal maior seria assim reduzido a um mal menor. O exemplo invariavelmente citado por esses pensadores é o da Lei Seca. Ao tentar impedir os americanos de encherem a cara o presidente Hubert Hoover, nos anos 20, acabou criando Al Capone e uma geração de traficantes de álcool ilegal. Legalizado novamente, nos anos 30, por Franklin Roosevelt, o alcool continuou a ser um flagelo social e de saúde mas parou de alimentar o gangsterismo armado. A solução defendida por The Economist , Friedman, Buckley Jr e outros talvez não seja viável, a curto ou médio prazo, em um só país, isoladamente. Mas debatê-la deveria deixar de ser um tema tabu.

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